Abordagem multidisciplinar de uma má oclusão dentaria e perturbação miofuncional através da Ortodontia e Terapia da Fala: Caso Clínico

Abordagem multidisciplinar de uma má oclusão dentaria e perturbação miofuncional através da Ortodontia e Terapia da Fala: Caso Clínico

Este mês contamos com mais uma publicação no Journal Dentistry http://www.jornaldentistry.pt/edicoes/ojd-47-janeiro-2018. O tema escolhido este mês foi a apresentação de um caso clínico ortodôntico em conjunto com a terapia da fala. Este caso é a prova da importância que tem uma abordagem multidisciplinar na resolução de mal oclusão dentária.

AUTORES:

Dr. Miguel Stanley, Medico Dentista, Departamento de Reabilitação Oral, White Clinic, Lisboa.

Dra. Ana Paz, Medica Dentista, White Clinic, Lisboa.

Dra. Alessandra Curto, Medica Dentista, Departamento de Ortodontia, White Clinic, Lisboa.

Dra. Rita Fernandes, Terapeuta da Fala, Departamento de Terapia da Fala, White Clinic, Lisboa.

RESUMO:

Desde o início do século XX, Angle, já referia a influência que as funções associadas aos órgãos fonoarticuladores, língua, lábios e bochechas, desempenhavam na ocorrência de más oclusões e como seria o comprometimento do sucesso do tratamento enquanto as funções não fossem adequadas e/ou reeducadas. O Terapeuta da Fala é o profissional responsável e competente na avaliação, diagnóstico e tratamento das alterações da motricidade orofacial, ou seja, nas perturbações miofuncionais. Tendo em conta uma avaliação multidisciplinar, o Terapeuta da Fala é um elemento da equipa essencial para melhorar as posturas miofuncionais orais e a oclusão dentária em conjunto com a ortodontia. Neste presente artigo pretendemos demonstrar um caso de sucesso no qual se conseguiu resolver a má oclusão do tipo classe III e a perturbação miofuncional através da ortodontia em conjunto com a terapia da fala.

1. Introdução:

Nos últimos anos, tem sido cada vez mais evidente a necessidade de considerar fulcral a relação entre a condiçào óssea/dentária e a musculatura e funções do sistema estomatognático. Tem-se observado que a oclusão dentária pode alterar ou condicionar as funções da musculatura oral. No entanto, não basta adequar as bases ósseas e/ou a oclusão dentária, se não for desenvolvida ou reeducada a função, ou seja, se não for eliminada a perturbação muscular e/ou funcional que possa interferir de forma negativa no equilíbrio do sistema estomatognático, a etiologia do desequilíbrio poderá estar condicionada (Jankelson,1990).

Desde o início do século XX, Angle, já referia a influência que as funções associadas aos órgãos fonoarticuladores, língua, lábios e bochechas, desempenhavam na ocorrência de más oclusões e como seria o comprometimento do sucesso do tratamento enquanto as funções não fossem adequadas e/ou reeducadas.

Ao contrário do que se pensa, o Terapeuta da Fala não atua apenas nas perturbações da comunicação. O Terapeuta da Fala é o profissional responsável e competente na avaliação, diagnóstico e tratamento das alterações da motricidade orofacial, ou seja, nas perturbações miofuncionais: fala, respiração, sucção, mastigação e deglutição. Quando existe uma perturbação da funçào, esta poderá refletir-se morfologicamente na parte dentária, com alterações de mordida e maloclusão (Gallo e Campiotto, 2009).

Quanto mais tardiamente se realizar intervenção, maior é a probabilidade de necessitar de tratamento ortodà´ntico e miofuncional. Os hábitos orais, não fisiológicos, são um dos principais fatores etiológicos das maloclusões.

Existem vários hábitos nocivos que interferem com a harmonia das funções referidas anteriormente, tais como: causas anatómicas de origem obstrutivas (nasais ou faríngeas) ou não obstrutivas funcionais que podem ser flacidez muscular, hábito ou hábitos parafuncionais/nocivos como por exemplo a sução digital, uso de chupeta e ou biberon prolongado, onicofagia, bruxismo, mastigação unilateral, alimentação pastosa prolongada entre outros.

Neste presente artigo pretendemos demonstrar um caso de sucesso no qual se conseguiu resolver a má oclusão do tipo classe III e a perturbação miofuncional através da ortodontia em conjunto com a terapia da fala.

2. Caso Clínico:

Em Setembro de 2015, um paciente de 22 anos do gênero masculino dirigiu-se à  consulta de ortodontia na White Clinic ™ devido a insatisfação estética.

Paciente com uma história médica saudável, refere ter feito tratamento ortodôntico prévio, no entanto para além das queixas estéticas refere não ter uma mastigação eficaz.

2.1. Avaliação Diagnóstica:

Após a avaliação clínica dentária foi observada uma má oclusão do tipo classe III de Angle molar e classe III canina, apinhamento dentário e mordida anterior topo a topo. Além da avaliação clínica foram utilizados meios de diagnóstico radiográficos, tais como a telerradiografia e a ortopantomografia, que ajudaram na decisão do plano de tratamento a seguir.

O paciente apresentava um perfil reto. não referiu ter dores nem estalidos na ATM, no entanto apresentava alterações da postura oral.

Foi observado pela terapeuta da fala em Fevereiro de 2016, devido a queixas a nível da postura oral e para correção da mesma e da posiçào lingual. Tendo em conta as alterações observadas e os dados recolhidos durante o processo de anamnese, foram realizados protocolos e/ ou testes de avaliação ao nível de algumas funções do sistema estomatognático: fala (articulação verbal) e mastigação e deglutiçào e respiração.

Após uma avaliação clínica que inclui a Anamnese Miofuncional, Protocolo de Avaliação Interdisciplinar Orofacial para Adultos, Avaliação Informal da Articulação Verbal, e alguns itens do Protocolo MBGR (Avaliação Mio funcional Oral) foi possível observar um conjunto de alterações com diagnóstico funcional em Terapia da Fala de respiração e suplência, ou seja, oral, deglutição atípica e repouso lingual inadequado. Tendo em conta o diagnóstico feito pela terapeuta, as consultas subsequentes em terapia da fala terão como objetivo promover a respiração nasal e melhorar e adequar as funções do sistema estomatognático.

2.2. Intervenção Terapêutica

2.2.1. Terapia da fala

De acordo com o diagnóstico realizado foi elaborado um relatório de avaliação de encaminhamento para a especialidade Otorrinolaringologia pelo diagnóstico de respiração de suplência, ou seja, respiração oral.

O objetivo principal da terapia da fala foi a reeducação das estruturas e funções do sistema estomatognático, nomeadamente, nas áreas da respiração (nasal) e das estruturas adjacentes (lábios) e posicionamento lingual (no repouso e na deglutição).

No repouso lingual foram utilizados elásticos ortodà´nticos com o objetivo de fornecer um estímulo propriocetivo intenso na língua facilitando, desta forma, a manutençào adequada do posicionamento lingual, mandibular e labial.

A utilização poderá ser realizada em momentos de repouso, sem conversação, colocando um ou mais elásticos no ápice e dorso da língua. O paciente deverá exercer força com a regiào anterior da língua até ao palato duro. Quando estiver nesta posição, o paciente deve fazer a oclusão dentária levemente. A utilização do elástico deverá ser no máximo de horas que conseguir e, com o decorrer do tempo, ir diminuindo o uso de forma progressiva.

Os elásticos que foram utilizados de forma progressiva, ou seja, fomos diminuindo o tamanho e a espessura de cada elástico, de forma, a reduzir a propriocepção na cavidade intraoral. Os primeiros elásticos utilizados foram 3/8 9.53mm 8 oz e posteriormente foram utilizados ¼ 6,4mm 61/2 oz.

Foi também realizado o treino do padrào de deglutiçào normal com as diversas consistências alimentares: sólido, pastoso e líquido. Em todas as consistências foi solicitado um conjunto de movimentos complexos, sendo eles:

  1. reunir o bolo alimentar no dorso da língua;
  2. elevar a língua até à  papila incisiva/palatina;
  3. tocar com ápice da língua na papila incisiva/palatina;
  4. movimentar o dorso da língua contra o palato duro realizando assim a retropulsão do bolo alimentar.

Ao nível da funçào muscular do orbicular dos lábios foram realizados exercícios de relaxamento ao nível do orbicular do lábio superior com massagem intra e extra oral. Foi ainda utilizada a banda neuromuscular CureTape azul de 5cm com o objetivo de diminuir a contração do lábio superior e manter o vedamento labial, sendo esta colocada da inserçào para a origem muscular.

Foram realizadas consultas de Terapia da Fala com periodicidade quinzenal e posteriormente mensal para intervenção e observação dos objetivos da reabilitação, quer ao nível esquelético quer ao nível funcional.

2.2.2. Intervenção Ortodôntica

Dado o diagnóstico de maloclusão e deglutição atípica, o plano de tratamento estabelecido foi o uso de aparelho fixo autoligável estético superior (Damon®Clear system) e metálico inferior (Damon®system) por um período de 26 meses em conjugação com consultas de terapia da fala.

Foi planificado colocar brackets standard nos dentes #13, #23, #31, #32, #41, #42, de torque elevado no #33 e #43, e de toque baixo no #12, #11, #21 e #22.

Em Novembro de 2015, antes do inicio do tratamento ortodôntico propriamente dito, foram feitas as extrações do #18 e #48, e do #28 e #38 em tempos diferentes.

Após as extrações e de um bom controlo da higiene oral por parte do paciente, foi feita a colocação dos brackets estéticos (Damon® Clear system) do 17 ao 27 cimentados com um sistema adesivo próprio para brackets ortodà´nticos (BrackFix, Voco ®, Germany) e colocação de um arco superior 0.14 CuNiTi (Ormco®).

Em Janeiro de 2016, foi feita a colocação dos brackets metálicos (Damon® system) do 36 ao 46 cimentados com um sistema adesivo próprio para brackets ortodà´nticos (BrackFix, Voco®, Germany), a colocação de tubos no 37 e 47, e a colocação de um arco inferior 0.14 CuNiTi (Ormco®).

Ao longo do tratamento foram utilizados elásticos intermaxilares do tipo classe III e foi seguida a sequencia clássica de arcos do sistema autoligável Damon®, do 0.13 ao 0.18×0.25 CuNiTi (Ormco®). Na fase final do tratamento foram utilizados arcos de aço do 0.17×25 ao 0.19×25 (Ormco®) e elásticos de intercuspidação na fase final.

O tratamento foi concluído em Dezembro de 2017. Antes da remoção do aparelho os contactos oclusais foram testados com auxílio do T-scan (Tekscan®), uma tecnologia que permite analisar os contactos oclusais de uma forma dinâmica e fidedigna.

Para evitar a recidiva do tratamento ortodà´ntico, foi colocado um splint 0.175’’ de canino a canino na arcada inferior (do 33 ao 43), e uma goteira de contençào (Essix®, Dentsplay) na arcada superior.

Discussão:

No presente caso clínico, a reabilitação ortodôntica e funcional através da utilização de aparatologia e adequação das funções do sistema estomatognático possibilitou um resultado final corrigido e melhorado ao nível da oclusão dentária e das posturas miofuncionais orais.

O diagnóstico, bem como a intervenção ao nível da respiração oral, devem ser realizados o mais precocemente possível para minimizar as consequências ao nível das funções orais. A avaliação e intervençào deste tipo de disfunções deverào, sempre, ser realizadas por uma equipa multidisciplinar (Jankelson, 1990; Binato e cols., 2006).

A terapia miofuncional orofacial é considerada como sendo um método de tratamento que pode corrigir e adequar as disfunções musculares, permitindo estabilidade morfo-funcional à s estruturas orofaciais. Assim, a Terapia da Fala pode provocar mudanças nos padrões funcionais e prevenir os desvios no desenvolvimento craniofacial (Gallo, 2009; Alvizua e Queirós, 2013; Pereira e Felício, 2005).

Referências:

  • Neuromuscular dental diagnosis and treatment, JANKELSON,1990.
  • Gallo J, Campiotto AR. Myofunctional therapy in children with oral breathing. Rev Cefac. 2009; 11:305–10.
  • Alvizua V, Quirós O. Efectividad de la terapia Miofuncional en los hábitos más comunes capaces de producir maloclusiones clase II. Rev Latinoam Ortod y Odontopediatría. 2013; 1–20.
  • Binato JA, Alviano WS, Ferraz CA, Souza MMG De. Análise das alterações miofuncionais na correçào da mordida aberta anterior. Rev clin Ortodon Dent Press. 2006; 5(5):46–51.
  • Pereira CC, Felício CM. Os distúrbios miofuncionais orofaciais na literatura odontológica : revisão crítica. R Dent Press Ortodon Ortop Facial. 2005; 10(4):134–42.

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